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OPINIÃO | Quando tudo vira política, a convivência vira trincheira

por João Saraiva



Já não se pode comentar uma partida de futebol, escolher um livro, partilhar uma oração ou fazer piada numa roda de amigos sem que alguém pergunte, com o cenho franzido: "Mas isso é de esquerda ou de direita?". A hiperpolitização da vida cotidiana — fenômeno cada vez mais visível no Brasil — tem convertido o diálogo em duelo, e a convivência, em trincheira.

Não se trata de negar a dimensão política da existência, como já advertia Aristóteles ao definir o homem como um “animal político”. Nem de desconsiderar os alertas de Michel Foucault sobre os jogos de poder em discursos aparentemente neutros. O problema é outro: quando tudo vira guerra ideológica, o tecido social se esgarça. A política, que deveria ser a arte da mediação e da construção do comum, torna-se o campo preferido da desconfiança, do deboche, da raiva.

Bourdieu advertia sobre a violência simbólica embutida nos discursos. Hoje, o que vemos é sua vulgarização: cada fala, cada gesto, cada meme é lido como ataque ou defesa de uma “causa”. A sociabilidade vai sendo substituída por patrulhas discursivas. E o medo de ser mal interpretado gera silêncios corrosivos — ou gritos histéricos.

Historicamente, sociedades que absolutizam suas divisões ideológicas correm riscos graves: do sectarismo à violência civil. Não é por acaso que em redes sociais se celebra a morte de adversários, se transforma o humor em arma e se substitui o argumento pela rotulagem. Não há mais espaço para a ambiguidade, para o “não sei”, para o afeto desarmado.

Sim, precisamos de consciência crítica. Mas também de leveza. Nem todo torcedor é miliciano. Nem todo vegetariano é comunista. Nem todo crente é bolsonarista. Nem toda piada é fascista. E nem toda discordância é traição.

Antes que as diferenças virem ódio e o diálogo vire ruído, talvez seja hora de reaprender o convívio. Porque viver em sociedade é, também, saber conversar sem destruir.

 
 
 

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